quarta-feira, 5 de junho de 2013

Edimburgo merece muito mais que a referência a um chá de whisky

"Edinburgh is a mad god's dream, fitful and dark". Era assim que começava um dos poemas gravados no muro do novo parlamento escocês. Um de muitos, uns em inglês, outros em gaélico, mas que ficou comigo porque é uma ode à atmosfera mágica, meio impenetrável e milenar desta cidade que, para mim, is the loveliest in the world

Não tem a beleza óbvia e por vezes irritante de Amesterdão, nem o rigor, limpeza e ordem germânicos de Estrasburgo; ao invés, é uma cidade escura devido à pedra uniformemente acastanhada, gasta e poluída pelos séculos, com que os seus edifícios são invariavelmente construídos. É escura, mas sem nunca ser sombria. Edimburgo é uma cidade sinuosa, de altos e baixos, de becos e ruelas muito estreitas, mas nunca é duvidosa, assustadora, suspeita. Não há um graffitti nas suas paredes, não obstante a fama estereotipada dos escoceses para a, er... selvajaria. É uma cidade segura, com uma qualidade de vida extremamente invejável não obstante o tempo que faz.

O tempo que fez a semana passada foi extraordinariamente benevolente para connosco. O sol brilhou, durante muitas horas, muito frequentemente, e a chuva manteve-se ao largo. Vi o azul do céu escocês, vi o dia nascer às quatro da manhã e fechar-se às onze da noite. Andei na rua às dez da noite não vendo vivalma, estranhando a ausência de gente e de lojas e cafés abertos, porque a luz do dia dizia-me, enganosa, que eram cinco da tarde. A frase que mais ouvi repetida das bocas dos locais foi "It's hot, isn't it?" porque claramente 18 ou 19 graus no final de maio equivale a vaga de calor na Escócia. Eu encolhia os ombros, sem dizer nada, porque claramente as perceções de calor variam muito na Europa e, francamente, deviam ver o que são 35 graus em Lisboa para conhecerem o calor!

Ganhei um respeito e sobretudo um carinho muito grande pelo povo escocês. Consigo agora entender e distinguir a sua individualidade que me tinha largamente escapado das primeiras vezes que visitei a Escócia de fugida. Os elementos que fazem a minha consciência acenar que sim, que estou no UK, estão lá - a tomada tripla, os carros em contramão, as distâncias em milhas, o volante do lado direito, o semáforo que acende laranja antes de acender verde, os Neros, as Debenhams, Primarks, Marks & Spencer, Tescos, HVMs, o omnipresente inglês, os autocarros de primeiro andar, o dinheiro esquisito, os Look Lefts no alcatrão, a chaleira no quarto de hotel, o omnipresente chá com leite, tudo grita "UK". Mas isso é para quem olha uma vez. Quem olha a segunda, a terceira, a décima, dá-se conta de um laivo muito forte, secular, cultural, subtil mas invariável, de qualquer coisa que não existe em mais lado nenhum. Primeiro são as bandeiras azuis de cruz branca. que marcam presença nas montras de pubs, em edifícios administrativos, em hotéis. Não como que a marcar uma posição desafiante, nacionalista, com cheiro artificial, mas sim a constatação de um facto. A Escócia existe de facto, os escoceses são um povo, têm uma história própria, verdadeira, distinguível dos ingleses. Mas a bandeira desfraldada no topo do Castelo de Edimburgo é a Union Jack...

Uma colega e amiga revelou-me que os escoceses têm uma mentalidade política profundamente diferente dos ingleses. Bem mais comunitária, mais socialista, mais complacente. Ela disse "We want to succeed, of course, but we want to bring everyone along with us." E isto, afirmou, é algo que os seus amigos ingleses simplesmente não entendem. Sim. Não obstante ter sido a terra natal de um pai do pensamento económico liberal (o que muitos protestariam ser um eufemismo para capitalismo selvagem), Adam Smith, a Escócia é muito mais esquerdista que o resto do UK. O partido trabalhista obtém as suas maiorias parlamentares graças aos deputados escoceses, o partido conservador é fraco da muralha de Adriano para cima e a palavra Thatcher é quase uma asneira nas Highlands. O UKIP, esse partido profundamente anti-Europa, assustadoramente anti-imigração e ridicularmente populista como só quem nunca governou pode ser, não consegue ganhar raízes na Escócia como o está alarmamente a conseguir em Inglaterra. No outro dia - e eu juro que queria ter feito um post sobre isto porque me ri tanto e bati tantas palmas sozinha como uma doida - o Nigel Farage foi a Edimburgo e foi corrido à sapatada de um pub porque o empregado atrás do balcão simplesmente se recusou a servir gente da laia dele. E depois o Farage queria vomitar mais um bocadinho de scaremongering numa conferência qualquer e não conseguiu porque os protestos foram tantos que ele teve que, literalmente, fugir a correr. Diziam os protestantes que não queriam escumalha fascista e homofóbica na cidade deles. O Farage, fulo da vida, lá tentou obrigar o Primeiro-Ministro escocês a condenar os protestos,  numa tentativa demasiado falhada de ligar protestos legítimos de quem não tem paciência para gente que gosta de espalhar o ódio e o racismo, à causa nacionalista, mas foi em vão. O Alex Salmond levantou-lhe uma sobrancelha e basicamente disse que cada um tem o que merece. E que não fosse criança e fosse aprender a argumentar, em vez de espalhar ódio sobre os nacionalistas escoceses. 

A Escócia, ao contrário de Inglaterra, tem uma ligação profunda com o Continente. Gosta dos europeus continentais, percebe a ideia de Europa, sabe o que isso é, sente-se parte. Dizem eles que os escoceses passaram a sua história toda a aliar-se ora com os franceses, ora com os espanhóis contra os vizinhos do sul, e que, uns séculos mais tarde enquanto Londres franzia o sobrolho ora à França, ora à jovem Alemanha e tentava equilibrar a balança europeia, os escoceses mantinham trocas comerciais com o Continente, negociando, trocando, vendendo, comprando, com os primos europeus. Na Europa, a Escócia vê uma oportunidade de ter uma voz, de escapar aos laços que a estreitam e regem em Westminster. Percebi, também, e claro como o dia, que a situação de meia autonomia, meia pertença em relação ao UK - a chamada devolution - não é nada mais que uma transição. Entendo que a independência seja o único passo lógico na luta por uma cada vez maior devolução de poderes. Porque é disso que se trata, devolução. A Escócia foi um país durante séculos, tem uma cultura política diferente da Inglaterra, há uma grande vontade de voltar a ser soberana. Dentro da família europeia, em parceria com a Commonwealth. É uma vontade transversal a tudo o que eu vi, senti, ouvi na Escócia, ainda que não seja unânime. O referendo de 2014 vai ser extremamente antecipado por esta outsider.  

Neste momento, Edimburgo está metade em Westminster. A justiça é gerida pela Escócia em Edimburgo, são os membros do parlamento escocês quem dita as leis do sistema penal da terra. Mas nas reuniões de ministros em Bruxelas, quem se senta à mesa é o Ministro da Justiça britânico, quem dá sugestões para a política europeia, quem decide, quem veta ou aprova legislação europeia, que será depois vinculativa em todas as partes do UK, mesmo nas que ele, nacionalmente, não decide nada. Porque é o UK que é país, estado-membro, não a Escócia. Muita especulação já houve também sobre a pertença da Escócia à UE caso se torne independente: entrada automática ou fase de adesão? Obrigada a adotar o euro eventualmente ou pode manter-se na libra? Os novos cidadãos escoceses perdem o direito a movimentar-se livremente pela Europa e só o ganham quando a Escócia voltar a pertencer à UE? Mas pode a UE retirar-lhes um direito, o de livre circulação, apenas por terem eles exercido o seu direito democrático de votar para a independência? Tanta pergunta sem resposta por não haver precedente. 

Sente-se o peso da História nas pedras da calçada das ruas de Edimburgo. E nas casas, seculares e com o mesmo traçado característico desde o centro aos subúrbios mais longínquos. Evidência de uma cidade que escapou às guerras devastadoras do Continente no século passado. Não se encontra uma capital tão medieval e sistematicamente preservada e autêntica na Europa continental. Acasos felizes que não são só acasos mas consequências de uma geografia muito periférica. Uma geografia que, para além disso, se caracteriza por ter mar à volta. Ser ilha e impossível de invadir a pé e a cavalo, basicamente. Apenas o Parlamento escocês destoa, um edifício moderno, sinuoso, e que consta que sem um único ângulo reto na sua arquitetura. Estranho mamarracho que suscita ódios e amores nos corações escoceses. (Mas eu diria mais ódios.)   

Por falar em ilha, vi novamente e por uma série de acasos muito felizes - estar sentada à janela, ter olhado na altura certa e estar um céu limpo - como a Grã-Bretanha é tão "já ali". É mesmo. Quando se vem do norte e estamos a sobrevoar a costa britânica, surge o mar e logo a seguir o Continente. Abarca-se ambas porções de terra no mesmo olhar, com uma língua de mar que parece ínfima da janela de um avião. É maravilhoso.

Quero muito lá voltar. 




S.    

2 comentários:

  1. Olha que giro, estivemos la' ao mesmo tempo :)
    Esteve fantástico, adoro a Escócia.

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  2. Uma das minhas viagens de sonho será sem dúvida um tour como deve ser por aquela região. Maio/junho deve ser a melhor altura para lá ir, há maiorres probabilidades de se apanhar dias bons mas ainda não há muita confusão

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