sábado, 2 de junho de 2012

As cidades dos mortos da Normandia

Este post vem uns dias atrasados porque andei propositadamente a adiar escrevê-lo. Não apetece, e tal, seria um bocado extenso e algo emotivo, escrevo amanhã. Mas após muitos amanhãs e post nem vê-lo chegou a altura de vencer a preguiça e deitar mãos à obra. Isto porque daqui a mais uma semana é que ele deixa mesmo de ser pertinente e há coisas que merecem ser registadas.

Ora bem, cemitérios.

Tinha um professor na licenciatura que uma vez disse que uma das melhores formas de se conhecer realmente um povo e a sua cultura é indo a um dos seus cemitérios observar a forma como honram os seus mortos. A frase ficou-me pregada à memória e penso nela sempre que passo por um ou os vejo assinalados num mapa. E estou cada vez mais convencida que o tal professor tem toda a razão.

Em Londres, um dos sítios mais marcantes que visitei foi o Highgate Cemetery, um cemitério nos arredores da cidade que revolucionou o meu próprio conceito de cemitério.


A partir daí, ganhei fascínio por estas diferentes cidades dos mortos, que espelham realmente bem a forma como uma sociedade encara o seu passado.

Na Normandia, o caso não foi diferente. Tomou talvez outras proporções por serem mortos especiais para a consciência coletiva de vários países, e para a Europa no seu todo. Refiro-me, claro, aos cemitérios de guerra.

As excursões às praias do Desembarque na Normandia todas incluem visitas a cemitérios de guerra. O problema que pode surgir é escolher: há o americano, o britânico e o canadiano. Geralmente as excursões são divididas em temáticas nacionais: os americanos têm como opção visitas guiadas aos setores das praias onde desembarcaram as tropas americanas mais o cemitério americano, e assim sucessivamente para britânicos e canadianos.

A nossa visita incluíu Omaha Beach (americano), Gold Beach (britânico), porto de Arromanches (britânico) e o tão famoso Cemitério de Guerra Americano da Normandia. Estava especialmente curiosa para visitar este último uma vez que os cemitérios americanos são sempre aqueles campos verdejantes e apaziguantes, de cruzes brancas, que se conhece dos filmes.

A verdade é que aquele lugar tem uma atmosfera de surrealidade impossível de descrever fielmente (eu vou tentar na mesma).


O dia, cinzento, chuvoso e frio, com algum vento à mistura, parecia ter sido escolhido de propósito para instalar o humor certo.

Números lidos num livro de História ou apontados a giz num quadro preto de uma sala de aula não conseguem de forma alguma imprimir na nossa compreensão a quantidade de gente que constitui o número dez mil. Mas um campo com cruzes brancas espetadas consegue.


Foi-nos dada cerca de meia-hora para cirandar pelo espaço, olhar as cruzes, ir até à capela multi-confessional no centro do cemitério e procurar a cruz do filho do Presidente Roosevelt, que participou no Desembarque.

Pelo caminho, encontrámos pormenores dignos de nota: as cruzes que não são cruzes, mas sim estrelas de David, assinalando que ali também combateram soldados judeus.


Cruzes engravadas com a frase "Here Rests In Honored Glory A Comrade In Arms Known But To God", assinalando soldados que nunca foram identificados.


Foi-nos dito que ali estavam apenas 40% dos soldados americanos que haviam tombado na Batalha pela Normandia, que durou cerca de 2-3 meses. Dez mil naquele cemitério, volto a frisar. Um campo imenso de linhas e linhas de cruzes brancas, mas afinal apenas uma gotinha no mar imenso das vidas humanas perdidas durante a Segunda Guerra Mundial.

Foi-nos dito também que aquele pedaço de terra onde está o Cemitério Americano foi concedido pela França ao Estado norte-americano, sendo que é completamente gerido pelo outro lado do Atlântico. Um batalhão de jardineiros cuida diária e zelosamente pelo espaço.

Algo que nos espantou foi a quantidade de cruzes que tinham uma rosa na sua base. Flores frescas, note-se. Sabendo que aquele é local de peregrinação de cidadãos americanos, suspeitámos que familiares dos soldados mortos ali fossem deixar as rosas em homenagem. Mas algo não batia certo; tantos e tão regularmente? A guia desfez o mistério. Ao que parece, existem no cemitério pessoas responsáveis por deixar flores nas campas, intervaladamente e de forma a que nenhuma campa esteja mais de duas semanas sem uma flor.

Ainda há fé na Humanidade. 

Dois dias depois, e após muita alteração de planos para melhor acomodar visitas imprevistas a cidades da Normandia, demos um pulinho a Bayeux.


Bayeux é cidade medieval, de ruas estreitas de calçada, casas de ripas de madeira e catedral imponente. É a cidade da famosa Tapeçaria homónima, considerada a primeira banda-desenhada da História, e que retrata a vitória de Guilherme o Conquistador na Batalha de Hastings, a última vez que os britânicos foram invadidos (1066!).

Mas Bayeux é também cidade de Segunda Guerra Mundial. Foi a primeira localidade francesa a ser libertada pelos Aliados. Por ser de ruas tão estreitas, foi a primeira cidade francesa a ganhar uma estrada circunvante, construída pelos britânicos para poderem facilmente deslocar soldados, munições, mantimentos, por esse ponto estratégico da Normandia. Foi, também, a única localidade a ser poupada à destruidora Batalha pela Normandia, graças a um soldado que, apercebendo-se da inexistência de tropas alemãs e conhecendo a importância centenária desta cidade, acorreu esbaforido e aos gritos para que os Aliados a poupassem a um bombardeamento (continua a haver fé na Humanidade).

É, ainda, a cidade do Cemitério de Guerra Britânico.



Este não tem cruzes. Lápides de pedra transmitem o mesmo sentimento de incredulidade perante os advérbios muitos e demasiados.

Aqui, para além do nome e da data da morte, as lápides têm a idade e uma mensagem personalizada, enviada pela família. A sensação de muitos transforma-se em indivíduos. Ali está bem presente que cada uma daquelas pessoas tinha uma mãe, uma mulher, um filho, uma filha que não voltaram a ver o seu ente querido.

As placas inevitáveis ao soldado desconhecido estão presentes, desta vez com a inscrição "A Soldier Of The Second World War Known Unto God".


No monumento principal, uma horda de papoilas de papel, exatamente iguais às que os britânicos usam à lapela por volta do Remembrance Day, em novembro.



Finalmente, o símbolo que melhor representa estas peculiares cidades dos mortos: a cruz-espada.



As duas nações anglófonas têm particularidades na sua relação com os seus mortos. Mas uma coisa é nítida em ambos os cemitérios: gratidão.



S.

1 comentário:

  1. os cemitérios na Escócia
    os que eu vi
    têm vistas lindas
    de morrer
    e quem lá mora
    espraia a vista
    em paisagens de sonho
    de beleza eterna

    os mortos da Escócia
    vivem felizes
    em espaços de encanto

    :)
    não é mórbido
    vi que fosse real
    se vivem ou não
    quem sou eu
    para dizer
    que não é real
    :)

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